“Os Sagrados Altares Tupiniquins”
Carnaval 2025
Benditos sejam os ventos do progresso que dispersaram as nuvens da ignorância e fizeram resplandecer a luz do Renascimento sobre as trevas medievais, revelando a nova era do conhecimento, da valorização da ciência e da razão que, como uma poderosa onda, banhou o “Velho Continente”, embebendo-o da necessidade de navegar e desvendar os mistérios para além do “Mar Tenebroso”.
Então, abençoados por Nossa Senhora da Esperança, destemidos navegadores se aventuraram nas águas do Oceano Atlântico, que a desgastada imaginação medieval ainda acreditava serem habitadas por misteriosos seres marinhos.
Depois de 44 dias enfrentando os próprios medos, tormentas, calmarias e doenças, desembarcaram no “Novo Mundo” intocado e fascinante. Naquele cenário edênico, ergueram a cruz, montaram o altar e, diante do espanto dos navios, rezaram ali a primeira missa em nome do Deus cristão e do Reino de Portugal. Para aquela gente de pele avermelhada, aquele ritual estranho não fazia o menor sentido, porque eles acreditavam em Tupã, o Deus dos trovões; o seu altar era a própria natureza.
Eram aos rios, aos espíritos dos animais, ao poder curativo das plantas e à energia do sol, da lua e das estrelas, que os Pajés Anciões recorriam em seus rituais para conter doenças, para clamar por boas colheitas e fartura na caça, para vencer inimigos nas guerras e para celebrar os antepassados.
E os nativos, desnudos, livres e felizes, cantavam e dançavam para os seus deuses, despertando o velho imaginário europeu que, alimentado pela crença na existência de um Paraíso Terrestre e de um Inferno, se manifestou entre o encantado e o assustado.
Na carta de batismo das terras “descobertas”, Caminha, o escrivão da frota de Cabral, envolve os povos originários numa atmosfera de candura e ingenuidade, comparando-os a Adão e Eva, e as paragens, aos Jardins do Éden; já as crônicas escritas posteriormente, qualificariam os indígenas, como luxuriosos e pecadores, criaturas sem leis, sem alma e sem rei; polígamos, com suas “vergonhas à mostra”, portanto “selvagens” ao ponto de representar quase a não-humanidade.
Diante dessa visão religiosa equivocada e preconceituosa, para os católicos portugueses não havia pecado em escravizar os indígenas em nome do lucro a qualquer custo. Porém, os “gentios”, que viviam em total liberdade, fugiam do trabalho forçado se embrenhando nas matas e, protegidos pelos deuses da natureza, jamais retornavam ao cativeiro.
Então, a crescente necessidade de mão de obra para as fazendas de cana-de-açúcar, fez a ganância colonial lusitana virar-se, então, para o continente africano.
Arrancados à força da terra natal, transformados em prisioneiros e jogados nos tumbeiros, os africanos atravessaram a Calunga Grande em viagens longas e desumanas onde muitos não resistiam e tinham os corpos jogados no oceano.
Ao chegarem aqui, os sobreviventes escravizados de distintas regiões da África traziam consigo diversas crenças que se entrelaçaram no terreiro colonial, modificando totalmente o cenário religioso com as suas divindades. Não raro, os representantes da Igreja Católica tentavam reprimir aqueles rituais que aconteciam nas senzalas, com seus batuques, cantos danças e rezas, diante dos “assentamentos” e altares improvisados.
É bem verdade que no caso da escravidão, a terra, assim como o mar, também tragou os corpos de milhares de cativos. Mas, Calunga Grande é o mar de Iemanjá, é a mãe que acolhe, é a enormidade de seu destino e de seu horizonte; Calunga Pequena é a terra de Omolu, o guardião da vida e da morte, e onde os corpos voltam a ser sementes.
Assim, mesmo diante de severa perseguição, as crenças dos negros escravizados e dos povos originários, encontram meios para sobreviver à imposição da fé cristã pelos colonizadores. E, mais ainda, se misturaram, tecendo uma religião sincretizada, com alma brasileira.
Mas, quem já passou pelas encruzilhadas sabe escolher os caminhos!
Com o tempo, essa mistura de crenças passou a fazer das ruas, os seus altares mais originais, manifestando-se nas tradições populares, no folclore, nas festas dos santos padroeiros, numa simbiose entre o sagrado e o profano, revelando através da festa do Divino Espírito Santo, do Reisado, da Cavalhada, dos Maracatus e dos Caboclinhos, essa extraordinária riqueza cultural.
E é em nome dessa riqueza, símbolo da miscigenação do povo desse país, que rogo aos deuses que abençoem a nossa agremiação para que a sua bandeira continue tremulando em nome de todos os perseguidos de ontem e de hoje, consagrando-a como guardiã desse imenso santuário tupiniquim.
Que a sua coroa, símbolo da sua história, resplandeça junto à coroa de Mãe Senhora de Aparecida e, juntamente com o poder das Yabás e os mistérios da Mãe D’água, nos guiem como matriarcas que são, porque toda mãe carrega o eterno; e façam de cada um de nós, filhos bem-aventurados e mensageiros da liberdade de credo.
É chegado o momento de colocarmos o que foi quebrado pela intolerância e pelo racismo religioso; de unirmos os retalhos, os pedaços sagrados de fé e esperança, e então entoarmos o nosso samba como um hino de paz, composto com a força dos versos sonoros de uma “Carta de Amor”.
Porque nós não andamos sós! Eu, eu não ando só!
… “Eu tenho Zumbi, Besouro O chefe dos Tupis, sou Tupinambá Tenho os erês, caboclo boiadeiro Mãos de cura Morubixabas, cocares, flechas e altares A velocidade da luz O escuro da mata escura O breu, o silêncio, a espera Eu tenho Jesus, Maria e José Todos os pajés em minha companhia O menino Deus brinca e dorme Nos meus sonhos O poeta me contou”…
O poeta me contou que foi esse mesmo menino Deus, que brincando e dormindo nos meus sonhos, me levou aos pés da Santa Cruz e me fez acreditar que é possível.
Cid Carvalho Carnavalesco