INTRODUCÃO
No carnaval de 2023, denunciamos a invasão das terras yanomamis por diversos tipos de exploradores gananciosos.
Já para o carnaval de 2024, apresentamos um enredo que evidenciou como o machismo é histórico e se perpetuou através dos séculos.
Para o carnaval de 2025, estamos fechando uma trilogia ao defendermos a liberdade de crença, o direito de cada um celebrar seu (s) deus (es) em suas mais diversas manifestações.
PRIMEIRO SETOR: AS ÁGUAS DO MAR TENEBROSO E O “ACHAMENTO” DO NOVO MUNDO
Benditos sejam os ventos do progresso que dispersaram as nuvens da ignorância e fizeram resplandecer a luz do Renascimento sobre as trevas medievais, revelando a nova era do conhecimento, da valorização da ciência e da razão que, como uma poderosa onda, banhou o “Velho Continente”, embebendo-o da necessidade de navegar e desvendar os mistérios para além do “Mar Tenebroso”.
Então, abençoados por Nossa Senhora da Esperança, destemidos navegadores se aventuraram nas águas do Oceano Atlântico, que a desgastada imaginação medieval ainda acreditava serem habitadas por misteriosos seres marinhos.
Depois de 44 dias enfrentando os próprios medos, tormentas, calmarias e doenças, desembarcaram em um “Novo Mundo” intocado e fascinante. Naquele cenário edênico, ergueram a cruz, montaram o altar e, diante do espanto dos nativos, rezaram ali a primeira missa em nome do Deus cristão e do Reino de Portugal.
SEGUNDO SETOR: ALTAR DOS GENTIOS: OS DEUSES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
Mas para aquela gente de pele avermelhada, aquele ritual estranho não fazia o menor sentido, porque eles acreditavam em Tupã, o Deus dos trovões; o seu altar era a própria natureza. Era aos rios, aos espíritos dos animais, ao poder curativo das plantas e à energia do sol, da lua e das estrelas, que os pajés anciões recorriam em seus rituais para conter doenças, para clamar por boas colheitas e fartura na caça, para vencer os inimigos nas guerras e para celebrar os antepassados.
E os nativos, desnudos, livres e felizes, cantavam e dançavam para seus deuses, despertando o velho imaginário europeu que, alimentado pela crença na existência de um Paraíso Terrestre e de um Inferno, se manifestou entre o encantado e o assustado.
Na carta de batismo das terras “descobertas”, Caminha, o escrivão da frota de Cabral, envolve os povos originários numa atmosfera de candura e ingenuidade, comparando-os a Adão e Eva, e as paragens, aos Jardins do Éden; já as crônicas escritas posteriormente, qualificariam os indígenas como luxuriosos e pecadores, criaturas sem leis, sem alma e sem rei; polígamos, com suas “vergonhas à mostra”, portanto “selvagens” ao ponto de representar quase a não-humanidade.
Diante dessa visão religiosa equivocada e preconceituosa, para os católicos portugueses não havia pecado em catequisar e escravizar os indígenas em nome do lucro a qualquer custo. Porém, os “gentios”, que viviam em total liberdade, fugiam do trabalho forçado se embrenhando nas matas e, protegidos pelos deuses da natureza, jamais retornavam ao cativeiro.
TERCEIRO SETOR: ALTARES AFRICANOS
Então, a crescente necessidade de mão de obra para as fazendas de cana-de-açúcar, fez a ganância colonial lusitana virar-se, então, para o continente africano.
Arrancados à força da terra natal, transformados em prisioneiros e jogados nos tumbeiros, os africanos atravessavam a Calunga Grande em viagens longas e desumanas onde muitos não resistiam e tinham os corpos jogados no Oceano. Ao chegarem aqui, os sobreviventes escravizados de distintas regiões da África traziam consigo diversas crenças que se entrelaçaram no terreiro colonial, modificando totalmente o cenário religioso com as suas divindades. Não raro, os representantes da Igreja Católica tentavam reprimir aqueles rituais que
aconteciam nas senzalas, com seus batuques, cantos, danças e rezas, diante dos “assentamentos” e altares improvisados.
É bem verdade que no caso da escravidão, a terra, assim como o mar, também tragou os corpos de milhares de cativos. Mas, Calunga Grande é o mar de lemanjá, é a mãe que acolhe, é a enormidade de seu destino e de seu horizonte; Calunga Pequena é a terra de Omulu, o guardião da vida e da morte, e onde os corpos voltam a ser sementes.
QUARTO SETOR: AS RUAS TAMBÉM SÃO ALTARES
Assim, mesmo diante de severa perseguição, as crenças dos negros escravizados e dos povos originários, encontraram meios para sobreviver à imposição da fé cristã pelos colonizadores. E, mais ainda, se misturaram, tecendo uma religião sincretizada, com alma brasileira.
Mas, quem já passou pelas encruzilhadas sabe escolher os caminhos!
Com o tempo, essa mistura de crenças passou a fazer das ruas, os seus altares mais originais, manifestando-se nas tradições populares, no folclore, nas festas dos santos padroeiros, numa simbiose entre o sagrado e o profano, revelando através da festa do Divino Espírito Santo, do Reisado, da Cavalhada, dos maracatus e dos caboclinhos, essa extraordinária riqueza cultural.
E é em nome dessa riqueza, símbolo da miscigenação do povo desse país, que rogo aos deuses que abençoem a nossa Agremiação para que sua bandeira continue tremulando em nome de todos os perseguidos de ontem e de hoje, consagrando-a como guardiã desse imenso santuário tupiniquim.
Que a sua coroa, símbolo da sua história, resplandeça junto à coroa de Mãe Senhora de Aparecida e, juntamente com o poder das Yabás e os mistérios da Mãe D’água, nos guiem como matriarcas que são, porque toda mãe carrega o eterno; e façam de cada um de nós, filhos bem-aventurados e mensageiros da liberdade de credo.
É chegado o momento de colarmos o que foi quebrado pela intolerância e pelo racismo religioso; de unirmos os retalhos, os pedaços sagrados de fé e esperança, e então entoarmos o nosso samba como um hino de paz, composto com a força dos versos sonoros de uma “Carta de Amor”.
Porque nós não andamos sós!
Eu, eu não ando só!
“Eu tenho Zumbi, Besouro
O chefe dos tupis, sou tupinambá
Tenho os erês, caboclo boiadeiro, mãos de cura
Morubichabas, cocares, arco-íris
Zarabatanas, curares, flechas e altares
A velocidade da luz, o escuro da mata escura
O breu, o silêncio, a espera
Eu tenho Jesus, Maria e José
Todos os pajés em minha companhia
O menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos
O poeta me contou”…
O poeta me contou que foi esse mesmo menino Deus que, brincando e dormindo nos meus sonhos, me levou aos pés da Santa Cruz e me fez acreditar que é possível.